top of page

Fono no Sertão

  • ekavolf
  • 9 de mai. de 2019
  • 4 min de leitura

Há algum tempo atrás e, na época, como membro da Igreja Presbiteriana Central de Limeira, fiquei conhecendo o trabalho de Asas de Socorro que é um trabalho missionário, de origem norte americana e que conta com uma logística de aviões e hidroaviões para conseguir alcançar regiões de difícil acesso por terra.

Inicialmente, nos primeiros trabalhos, evangelizavam a população visitada e voltavam para suas bases (Anápolis, Belém, Roraima...). Após algum tempo notaram que, muitas vezes, deixavam para trás uma população doente e carente de cuidados médicos e de assistência em outras áreas da saúde. Surgiram aí as primeiras “clínicas”, que eram viagens com a finalidade de, também, auxiliar a saúde da população. Essas clínicas receberam o nome de AMDE (Assistência Médica, Dentária e Evangelística)

Em julho de 2003 surgia uma viagem para o interior de Pernambuco, no Vale do Araripe. Decidi que eu iria. Éramos um grupo bastante heterogêneo entre adultos e adolescentes, médicos, empresários, dentistas, enfermeiros, donas de casa e eu, como única fonoaudióloga. No nosso grupo havia uma dentista de Americana que já tinha feito viagens incríveis de barco, descendo o Rio Amazonas, atendendo em tribos, tomando banho de rio e comendo apenas o que a comunidade produzia. Recentemente tinha ido a Paris num Congresso de Odontologia para Missionários.Valeu ter conhecido uma pessoa como aquela !!!

   Depois de quase 96 horas de viagem atravessamos o Rio São Francisco  ...grande Velho Xico - já bem pertinho do nosso destino. Conheci de perto o deserto, a caatinga , o relevo...enfim, figuras só vistas, por mim, nos livros de geografia em tempos de colégio e vestibular. Quanta pobreza!! Passamos por estradas perigosas e abandonadas onde não podíamos parar em hipótese alguma, afinal, caso a noite chegasse, o perigo aumentava ainda mais devido a presença saqueadores. Um pastor carioca, missionário de Asas de Socorro que nos acompanhava em nosso ônibus, já bastante experiente naquela região, em muitos momentos mostrava o rosto preocupado com o perigo iminente. Nessas horas cheguei a questionar o que eu estava fazendo ali, e ainda com minha filha de 13 anos junto!!

Era de madrugada quando chegamos em nosso destino: Bodocó. Ficamos alojados em uma escola e, na recepção, fomos recebidos com uma comida que, pela escuridão do lugar, não conseguíamos enxergar bem o que era. E o medo que fosse a temida e prevista iguaria local: buchada de bode !! Fui dormir aquela noite com fome, mas com a certeza de ter escapado da refeição excêntrica.

No dia seguinte conhecemos as comunidades onde realizaríamos nosso trabalho. Como ir do alojamento até as comunidades? De pau de arara!

Numa das primeiras comunidades notei uma quantidade muito grande de crianças com deficiência na audição. Imaginei que quando surge um caso de rubéola (causa comum de deficiência auditiva), por exemplo, afeta logo uma dezena de mulheres grávidas na mesma vila; considerando que lá, uma mulher em idade reprodutiva ou está “dando o peito” ou, como eles dizem, está “de barriga”, na ausência de vacinas isso se torna o caos. Encontrei uma mãe aguardando para entrar no atendimento ginecológico e logo percebi que o bebê que carregava no colo tinha Paralisia Cerebral. Pensando na fisioterapia perguntei: Mãe você leva o seu filho para fazer aqueles “exercícios” na perna, no braço?? Com aquele sotaque típico, me respondeu:” Levo não, moça!!!  É muito longe daqui e a condução só passa de tempo em tempo, cada 15 ou 20 dias...” Senti o nó na garganta e tive que disfarçar para aquela mãe não notar a minha fraqueza e indignação. Questionei se tinha recebido alguma orientação sobre amamentação, postura durante a alimentação, linguagem e ela prontamente respondeu que não, nunca. Vi mocinhas, com seus 12 ou 13 anos usando “bico”, isto é, chupeta. Vi crianças que, frutos de incesto, apresentavam variados graus de deficiência mental, provavelmente devido a problemas de consangüinidade. Com muita tristeza observamos que, nessas regiões de miséria extrema, inclusive miséria moral, é comum filhas engravidarem de seus pais ou irmãos! Vi dezenas de casos onde a família toda apresentava uma alteração de fala, sem que isso causasse estranheza alguma; digo alterações graves comprometendo a inteligibilidade do discurso de forma acentuada...enfim um quadro dramático para um país como o nosso, onde temos uma Fonoaudiologia reconhecida mundialmente, com uma enorme produção científica e com inúmeros profissionais reconhecidos internacionalmente... Está na hora de repensar muita coisa!

Mas naqueles dias nem tudo foi feito só de imagens feias. Voltávamos para o alojamento quando já havia anoitecido e, como era época de lua cheia, pudemos confirmar que, realmente, não existe luar como o do sertão!!! Lindo....

Passar orientação às famílias era complicado porque as mães daquelas crianças também mostravam certa limitação intelectual o que dificultava a compreensão daquilo que eu explicaria. Como vi escolas por lá, logo pensei: ” se tem escolas tem professores”. E foi com essa visão, de aproveitar os professores da região, que no ano seguinte, mais amadurecida e já com o aprendizado obtido no sertão pernambucano, busquei outra região e, novamente com Asas de Socorro, o próximo destino foi o Vale do Jequitinhonha. Mas isso é outra estória!!!

A grande certeza que trouxe de tudo isso foi que, sob cuidados intensos e exclusivos de Deus, como Waleska e como fonoaudióloga, eu muito mais aprendi do que ensinei.

Valeu... sem sombra de dúvida, valeu!!!

Waleska Madrid Volf (Artigo publicado no jornal Gazeta de Limeira)




 
 
 

Komentarze


  • Facebook Social Icon
bottom of page